Originalmente publicado em http://www.travelblog.org/South-America/Argentina/Mendoza/Mendoza/blog-249321.html
Um dia antes de saírmos para o Cerro Plata, chegou no albergue onde estamos hospedados um casal voltando do cume do Aconcaguá. O cara tinha a ponta de todos os dedos com princípio de congelamento (pontas inchadas e cor roxo escuro) e a mulher não conseguia andar direito pois um dos pés também tinha congelado.
Obviamente essa imagem mexeu bastante comigo. Estávamos prestes a tentar uma coisa muito parecida (tudo bem que o Cerro Plata é muito mais fácil que o Aconcaguá, até por isso que escolhemos o primeiro e não o segundo) e tinha certeza de que não queria voltar como eles voltaram. Eles chegaram ao cume. Apesar do pouco tempo que conversamos fiquei com a impressão de que estavam felizes. O sacrificio valeu a pena por terem chegado ao lugar mais alto do mundo fora do Himalaia. Eu não penso assim e gosto muito dos meus dedos.
De Mendoza pegamos um transporte que nos deixou na estação Ski e Montaña, o transporte é organizado pelo próprio pessoal da estação. Chegamos de carro a 2900m de altitude, começamos a caminhar e cada passo implicava em estar o mais alto que já estivemos em toda nossa vida. As mochilas estavam bastante pesadas com comida para oito dias e mais equipamentos para frio, alguma coisa em torno de trinta ou trinta e cinco quilos. Apesar de ser aproximadamente o mesmo que levávamos no circuito grande do Torres del Paine a altitude fazia com que tudo fosse mais difícil e devagar.
Dormimos a primeira noite no acampamento Veguitas, cerca de uma hora de caminhada depois da estação de ski. No dia seguinte partimos para tentar o cume do San Bernardo uma montanha de 4200m para começar a aclimatação. Não tínhamos idéia do que esperar duma montanha nessa altitude e saímos com as mochilas de ataque cheia de casacos que não chegamos a usar.
O dia seguinte foi marcado por uma lenta e difícil caminhada até o acampamento Salto de água (4200m). Dessa vez deu para sentir de verdade a dificuldade de se caminhar em altura, cada passo precisa ser acompanhado de uma respiração mais profunda e ainda sim sempre fica a sensação de que não há ar suficiente. No acampamento há um domo da Ski e Montaña que oferece uma série de serviços para quem estiver afim de gastar uma grana a mais. É possível contratar mulas para subir e baixar cargas, comprar refeições ou mesmo mantimentos. Além do funcionário da empresa, haviam mais duas barracas. Uma de um uruguaio e outra de um brasileiro que estava aclimatando para tentar o Ojos del Salado (http://www.rosier.com.br).
O dia seguinte foi dedicado ao ócio para o corpo se acostumar a altura. Até esse momento estava feliz por não ter sentido nenhum sinal da altitude, nem dor de cabeça, nem enjôo, nem dificuldade para comer. Comecei a viver a ilusão de que iria chegar aos 6100m do Cerro Plata e voltar sem qualquer incômodo. Combinamos com o brasileiro de irmos no dia seguinte até o Portuzuelo Plata-Vallecitos (5100m) para aclimatar e também já conhecer parte do caminho que faríamos no dia que tentássemos o cume.
Partimos para o portozuelo por volta das nove horas da manhã junto com o brasileiro Rosier e mais dois mendocinos que estavam num acampamento um pouco abaixo, o Piedra Grande. Um deles ia tentar o cume do Vallecitos e o outro, também Rodrigo de apenas 16 anos, ia até o portozuelo, pois seu pai, montanhista pioneiro na região, não deixava ele chegar mais alto com essa idade. Os dois nativos não paravam de comentar como um tempo limpo e sem vento como o daquele dia era um milagre.
Pouco antes de chegarmos ao nosso objetivo a ilusão de voltar da expedição sem qualquer problema em função da altitude acabou. Minha cabeça começou a doer e o incômodo, alguma coisa do tipo “parem o mundo que eu quero descer”, só foi acabar algumas horas depois quando já havíamos voltado para as barracas.
A caminhada até o portozuelo foi extremamente cansativa em função da altitude, mas sem nenhuma dificuldade técnica. Fazia algum tempo que não nevava e por isso os trechos de gelo eram minúsculos. Na chegada fiquei abismado com a visão, que segundo algumas pessoas que estavam no Salto de Água é considerada mais bonita que a do próprio Aconcaguá. Do Portozuelo Plata-Vallecitos é possível ver a face sul do Aconcaguá e o Cordón de la Jaula, uma formação de rocha impressionante. São nesses momentos que encontro o sentido de fazer tudo isso, de investir tanto tempo nessa atividade, e ainda assim não consigo colocar em palavras. É uma sensação.
O restante desse dia e do dia seguinte foram novamente dedicados ao ócio. Nos momentos de descanso dedicamos bastante tempo para cozinhar. Apesar do peso extra que isso representa, gostamos de comer comidas gostosas. Nada como um arroz integral com lentilha e algum legume para renovar as energias.
Cada minuto do dia de descanso passou muito devagar, o dia seguinte era o tão esperado dia de tentar o cume do Cerro Plata. Já havíamos terminado de ler por completo a revista e o livro que havíamos levado (isso sem mencionar as embalagens de todos os alimentos que tínhamos). A ansiedade também era grande pois não tínhamos muita idéia do que nos esperava depois do portuzuelo. Não tínhamos botas plásticas e todo mundo falava que era necessário. Não tínhamos mintones e todo mundo falava que era bom ter. No final da tarde NEVE!!! Genial!!! Tudo branco!!!
Fomos dormir com a incerteza de sair para atacar o cume ou não em função da melhora do tempo durante a noite. As três e meia da madrugada acordei com o Xuxa me chamando, ou seja, ferozmente balançando minha barraca fazendo muito barulho (não acordo de outra forma). O tempo parecia bom e tudo estava pronto. Era tomar café da manhã e partir. Saímos do acampamento por volta das cinco junto com um outro grupo guiado que ia tentar o cume do Vallecitos e mais duas pessoas que, como nós estavam por conta própria. Na luz da lanterna de cabeça seguimos os totens e os passos dos dois que estavam a nossa frente. O início do caminho foi relativamente tranqüilo, não fazia muito frio, não ventava e estávamos nos sentindo bem.
Conforme ganhamos altitude e o nascer do dia foi se aproximando, o frio aumentou significativamente. Como era de se esperar os pés e as mãos eram os que mais sentiam. Paramos por duas vezes para colocar mais luvas ou casacos. Paramos mais uma vez para tomar chá que estava nas garrafas térmicas pois a água dos cantis congelou. Segundo um dos dois caras que caminhavam na frente com a gente fazia alguma coisa em torno de seis graus negativos. Quando já podíamos ver uma linha de claridade no horizonte começou a ventar e o frio aumentou. Tive a desagradável sensação de perder a sensibilidade da ponta de todos os dedos da mão, o meu pé estava bem. O Xuxa, por sua vez, sentia muito frio apenas nos pés. Inevitavelmente lembrei do casal que havia feito o cume do Aconcaguá. Não tinha a menor idéia de quão longe meus dedos estavam de ficar iguais aos dedos daquele cara. Medo.
No Portozuelo Plata-Lomas Amarillas (um pouco abaixo do Portozuelo Plata-Vallecitos), decidimos que o melhor era descer e desistir do cume. Poucos minutos depois, ainda próximo do lugar mais alto que havíamos chegado naquele dia, o Sol deu as caras e o frio diminuiu bastante. A chance de voltar a subir e tentar o cume era clara. Optamos por não segui-la. Era possível que desse tudo certo e fôssemos até o Cerro Plata, mas se o tempo ficasse feio no meio do dia era bem possível que tivéssemos problemas. Não estava afim de apostar que o tempo ia ficar bom e arriscar perder de novo a sensibilidade dos dedos.
Um pouco mais para baixo, já com o Sol alto e sem frio nenhum começamos a brincar com a neve que cobria todo o caminho que dois dias atrás era somente rocha. Muitas fotos e guerra com bolas de neve. Chegamos no acampamento depois de parar muitas vezes para tirar as camadas de casacos e ainda assim estávamos com calor.
Comecei a conversar com um mendocino que já havia feito o Plata numa outra temporada e estava lá agora para tentar o Vallecitos. Expliquei porque havíamos desistido do cume e ele me disse que em alta montanha “lo más importante son los veinte” (dedos). Desde então essa frase não sai mais da minha cabeça, acho que vou adotar como lema pessoal em relação ao montanhismo.
Desmontamos as barracas e descemos para a estação de ski no mesmo dia, de onde pegamos o transporte para Mendoza. Já no albergue encontramos com o casal do Aconcaguá, a menina estava bem melhor, já conseguia caminhar. O cara tinha bandagens com um pouco de sangue em nove dos dez dedos da mão. Ainda não tive (e acho que não vou ter) coragem de perguntar o que aconteceu e como ele está.
Se possível ano que vem (ou em outro momento) volto para Mendoza para tentar mais uma vez o Cerro Plata. Escolhemos esse cerro como primeira experiência em alta montanha pois nos disseram que seria uma boa escola, um bom lugar para começar. Certamente aprendi muito e já estou contando os dias para voltar e aprender mais (e me divertir). Nos próximos dias, se me animar, devo fazer um post com algumas informações mais detalhada que podem servir para quem quiser tentar alguma coisa parecida no Cerro Plata.